domingo, 29 de março de 2009

CRISÁLIDAS ROSAS CÁLIDAS



O diabo acenou-me de uma rua de terra, estourando o seu dedão gordo, pequeno, de unhas feias e doentes, atrás de um poste velho, perto do meu agressor - pá-bum, em mim (o agressor), lançando-me para muito próximo do mesmo poste na qual se postava o demo, rindo-me das cadeiras fodidas. Feriu-me, o carro, lanceando as minhas pernas estioladas - o agressor embriagado babava, gaguejava desculpas pouco palatáveis: “Desculpe-me.”
Eu espiava o dos chifres da janela encardida da sala da minha casa: – Ei, você, putativo, filho da puta, sua mãe tem ferida na bunda - manguei dele e ele, ah, ele virou uma fera, estirou-me um palmo de língua-mais-que-feia. Sorriu-me após. Pouco dei bolas àquele lá – só se eu der as minhas bolas de baixo, porque outras deveras eu não as tenho e não as dei; bolas de basquete ou de salão: “Queres, capetão, besta-fera, irônico príncipe das noites terríveis fatais?”
- Muito obrigado – agradeceu-me ele por não sei o quê, coçando o rabo, rindo, pondo os dedos fétidos em suas ventas de porco: ronc, ronc.
As minhas pernas corriam desesperadas, jogando bola, chutando cus magrelos, bailando aqui, acolá, assemelhando-se a gravetos desvairados. “Por nosso Senhor” – diziam as minhas pernas fugidias ao ouvir os meus gritos, apesar dos meus brados não serem de dor e não terem som.
Encontro-me deitado na mesma rua terrosa, próximo ao mesmo poste, na qual o demônio ri agora desvairado de mim. Contudo, umas pessoas observam queimar os gravetos – com os quais fiz alusão às minhas pernas (Mentira minha, fiz alusão coisa nenhuma!), sem maior acuidade nos olhos arrogantes. Queimam-se os gravetos em um fogo junino.
Escuta-se habitualmente a ledice da batata doce estralar: trec, trec, o pinhão ser descascado, conversas desnecessárias ou alegrias forçadas de ditos cujos perderem-se pela noite mais ou menos fria, junina. Os olhos curumins deixando-se estar apaziguados – deles, os ditos cujos -, sem poesias, diante da fogueira junina, da batata doce, do pinhão, da alegria forçada, da conversa desnecessária eclodindo do nada. Eu, preso nesta cadeira diabólica (cá), fico a observar as pessoas (lá – na rua terrosa, onde me estirei outrora acertado por um carro) a distância, neste tempo excêntrico, onde não há poesia, todavia há os blá-blá-blás: “Oi.” “Olá, não vão ficar?”, inquiro em vão. Sei, os blá-blá-blás não são mais meus amigos, já pertencem a outros abjetos blá-blá-blás.
Quando eu tinha as minhas pernas, todas as mulheres, crianças, homens e o próprio diabo vinham-me fazer visitas, fazer-me companhia ou dar-me beijos no rabo, sussurrando-me o amor ser um sentimento inacabado, ainda que nos Dias dos Namorados, cujos lambiscos nos lábios cadentes são por demais um dengo agradável a todos, todos se portem como mimosos, dengosos, manhosos, muito embora, depois que se finda o amor, os xingamentos, os-vai-tomar-no-seu-cus prevaleçam eminentes. “Alô?” “Vai tomar no seu cu.”
Então uma alegria me joga na parede e dá-me tabefes valentes na cara-risonha, pois eu me escancaro em gaguejar, embriagado pela ventosidade emitida pelo cu de Baco; eu, imbecil feito só, idiota, porém fantástica poesia eu faço emborrachado pela ventosidade emitida pelo cu de Baco:
Amorzim da minha vida,
Paixão do meu bem-querer,
Serei teu por toda vida,
Se minha fores até morrer.
Quero cruzar os céus, brincar de burquinha, amar com verdade o amor da minha vida: a menina de pele guarada, eu a conheci uns-tempos-outros-atrás – ah, minha bela e doce amada, como é bom te amar e te amar e te amar.
Fosse assim, ó: eu no hospital, uma gorda enfermeira de bigodes mexicanos bolinando em minha bunda fofinha - pá-bum: “Ai, ai, tira a mão daí.” Só compreendo: o meu agressor e o diabo correram com as minhas pernas fugidias.
O diabo acenou-me com o dedão feio, gordo, de unhas amarelecidas e doentes – pés de bode o diabo possuía. “Cacete!”, exclamei tendo os olhos perdidos, embora sentisse vaguear acima dos meus sobrolhos as Crisálidas Rosas Cálidas. Elas banhavam a Flávia Encanto com devaneios outros. Loucuras nostálgicas perseveravam em mim. A Flávia agitava-se na grama do campo florido. Uma cabrita levada, no campo, ao redor das Crisálidas Rosas Cálidas – e a Flávia inclinou-se para: “Quando ela serenava... a flor beijava-a... Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...”
Um leve vestido sobre o corpo guarado. Sem calcinha pequenina: “Que delícia”, disse eu, sem sentido, sem as pernas minhas fugidias, cheirando rosas.
- Peguem-no, ladrão! – berrei, assim que as perdi, as pernas. O demônio escapava com elas - cotocos. Os meus dedos dos pés sacaneavam-me com ri, ri, ri, o caralho e tal. Necessito-me das pernas para percorrer descaminhos, erros verossímeis, sou um ser humano.
No campo florido faria gostoso chá de camomila. Despejaria bastante açúcar em minha xícara de chá para fortificar-me o sangue escarlate – este pulsa feroz. No campo, cheirar-lhe-ia as Crisálidas Rosas Cálidas ou a Flávia Encanto. Sem as minhas pernas, tornou-se impossível tudo nesta vida. Orgulhoso, eu dizia ser dono dos descaminhos da vida. Que nada!
Todos os meus amigos usufruem das minhas pernas como desejam para chegar ao descaminho final, nas Crisálidas Rosas Cálidas.
Em mim estão os amores das Crisálidas Rosas Cálidas. Elas foliam com a Flávia Encanto. Insistente, esta as deseja beijar e beijar, mas nos campos bem verdinhos, floridos, onde a boqueira de peito amarelo grita: “Flávia Encanto, está sem calcinha – que delícia.” Ah, não, a Flávia troca as Crisálidas (ah, deixa pra lá)... e desembesta a correr atrás da boqueira de peito amarelo, só porque:
- Está sem calcinhaaaaaaaaaaaaaaaaaaa.
Sem ela, para mim, quem sabe: Flávia menina.
Encontra-se, ela, aqui, em mim, não morta, porém vivíssima, branca orquídea aprazível. Eu ficaria pelado ao seu lado, no campo, permitindo ao brando vento tocar a minha vida, sentindo patinhas de formigas percorrendo as minhas pernas, rumo ao meu rabo. Saíam formigas. Estou à procura das minhas pernas fugidias. Com elas poderei achar as Crisálidas Rosas Cálidas – ah, minha peônia branquela, canto-te bacânticas cançonetas, bichinho lindo, oi, amor e olá Flávia Encanto:
Em uma noite tu dormias
ao meu lado.
Suspiravas, encolhidinha,
E aos poucos eu tirava
A tua pequenina calcinha.
Foi assim, ó: quando eu percebi, já estava no hospital, sem sentir sentimento gostoso: pá-bum. No hospital, cotoco, vendo as minhas pernas loucas fugirem de mim, rindo-me da cara de susto que eu fazia: pá-bum, então pensei na Flávia, o meu grande amor, meu bichinho branco, meigo, no entanto brava-feito-a-peste - de bunda rotunda, peitos lindos feito pêras, pele tão assim e o diabo de tão cheirosa; cabelos longos, olhos azuis, voz possante, apesar de suave. Pá-bum. Eu no hospital, reclamando para uma enfermeira gorda sobre os maus-tratos ou as passadas atrevidas das mãos da senhora gorda em meu rabo despido; peituda, bunduda e tudo grande, a enfermeira:
- Por favor.
- Cale-se – berrou-me, encarando-me, socando o dedo no meu rabo e tirando e socando até que:
- Oi, amor – disse-lhe eu.
- Oi, bichinho – disse-me ela, o amor da minha vida.
O diabo, as pessoas, as crianças, as mulheres de saias curtas achincalham lá fora com o diabo e o meu agressor.
Lembro-me, cativo por minhas memórias doloridas, da mulher por quem morro de amoooooores.
Estou abancado nesta cadeira maldita. Mamãe dorme tranqüila. Eu invejo a vida. Ela passa ligeiramente, porque viver é um encanto. Como terei capacidade para encarar um novo começo? Todos os novos começos para um homem são começos e tantos, uma nova vida, as coisas dessemelhantes.
Observo o mundo vendo o meu reflexo da janela da sala. Começo a chorar. A campainha toca dim mais dom. Tento me levantar, percebo: não tenho pernas. Mamãe grita do quarto, quer água. Caio no chão. Todos me olham da janela da sala, o espelho que me refletiu por anos. Rastejo como a Barata de Kafka. Se preferir, Barata-Kafka ou Kafka-Barata. As lágrimas desabam de meus olhos, perfuram o chão avermelhado, concreto bravio – quando eu morrer, ainda serei concreto.
Arrasto a cortina. Fecho-a na cara dos patifes. Eles batem na janela, querem que eu vá achincalhar com eles:
- Não posso, cachorros.
Ainda rastejando, entro na cozinha. Ela tem o cheiro perfumado. Era o perfume da Flávia Encanto. Ai, quando fazíamos amor, olhávamos um nos olhos do outro – na minha cozinha onde se espalham cuecas e meias e CDs meus de EBM.
Umas Crisálidas Rosas Cálidas dançam para mim, festejam a morte minha em minha cozinha, onde se espalham cuecas e meias e CDs meus de EBM e outras coisitas mais, como garrafas de Campari e Cynar, papéis velhos, poesias ordinárias.
O cemitério é um lugar de sofrimento. Lá se cessam vidas precocemente. Vidas daquelas pessoas que gritam para eu sair e divertir-me. Sorrir nunca mais! Vocês estão mortos. Pssssiu.
Encho um copo com água. Vou até o quarto de mamãe. Abro a porta. O sol introduz-se na fresta da janela do recinto.
Após beber a água, mamãe beija-me as faces regadas por lágrimas. Lembro-me de quando ela deu-me um tapa tão violento que quase me arrancou o diabo da orelha. Puniu-me por eu ter ido brincar de burquinha sem sua permissão.
- Para os diabos! – irritei-me.
O universo é tão negro. “Calem-se, canalhas, o mundo necessita de silêncio.”
Entro em meu quarto – tão tenebroso. O diabo encosta-se preguiçoso em meu ombro.
- Arreda, pois.
- Então tá – diz-me ele, sacolejando os ombros pretos em desdém, deixando-me um cheiro de enxofre – diabo dos diabos!
Enrolo-me dos pés à cabeça. Prefiro morrer assim, sem ver o dia passar. Em meus pensamentos, as Crisálidas Rosas Cálidas perfumam o corpo gostoso e alvo da Flávia-Meu-Encanto-Meu-Amor-Minha-vida-Minha-Crisálida-Rosa-Cálida-Pequenina.